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Ilustração de Isadora Machado

Ilustração de Isadora Machado

 

Pela primeira vez em 23 anos, o setor de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos teve uma retração, que resultou em queda real de 6% em 2015 em relação ao ano anterior, resultado da instabilidade econômica vivida pelo país. Mesmo assim, a indústria da beleza continua a todo vapor: um levantamento feito pelo Anuário ABIHPEC 2015 (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos) mostra que, em 2014,o setor faturou 101,7 bilhões, o que representa um crescimento nominal de 11% com relação ao ano de 2013 [O anuário com dados relativos a 2015 ainda não foi divulgado]. Por isto, é fato, com crise ou sem crise, a indústria da beleza nunca vai se cansar de falar que você é feia, porque isso dá lucro pra caralho.

O estímulo às vendas vem de uma força midiática que dita como nossos corpos devem ser, deixando cada vez mais difícil resgatar o amor próprio. Para isto, segundo o IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística), o segmento de HPPC é um dos que mais investe em comunicação na mídia, superando até mesmo a indústria automobilística. Uma publicidade que vem de forma violenta e, quase sempre, em mídias que estimulam um consumismo desenfreado, irresponsável e que mutila a identidade da mulher.



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Me irrita tudo ser tão injusto com a gente. Tem muitas coisas que esperam de nós e, por mais feministas e libertas que sejamos, essa porra entra na nossa cabeça. Assistir TV aberta é um exemplo disso. Nas propagandas são tantos absurdos que eu me sinto agredida. E isso é mais discrepante ainda porque sei que as mulheres que eu admiro não têm esses estereótipos, mas independente da aparência de cada uma, a imagem da bunda da Paolla Oliveira não me deixa em paz também.” Mariana de Foda-se Meu Quadril Largo Quando Eu Engravidar, 28 anos.

A Mari tem razão. Nos meios de comunicação, seja em filmes, telenovelas ou propagandas, o corpo esbelto e a beleza construídos simbolicamente com base em padrões sociais pré-formatados impressionam, e muito. [Vale assistir ao vídeo Objetificação da Mulher]. E antes que você chame a isto de futilidade, saiba que, muitas vezes, não é raro nós, mulheres, repetirmos esse comportamento como forma de aderir a um processo de auto-aceitação que faz com que a “mulher real” se distancie um tanto da mulher idealizada, o que traz pressão e frustração pessoal. [Recomendo a leitura do artigo O padrão de beleza imposto pela mídia].

Mas, como faz quando você não se encaixa nesse mercado consumidor? Viviane Que Ama Seu Sorriso, 26 anos, me contou que nunca se sentiu à vontade com relação à sua identidade, pois, desde muito nova, não se encaixava nos moldes de etiqueta de uma mulher “convencional, feminina, delicada, rosa”. O que ela fez para se sentir melhor? Foi se encontrar.

“Essa questão de identidade de gênero sempre foi difícil para mim; sempre me senti a “diferentona”, incapaz de estar dentro de qualquer padrão de beleza que eu me identificasse. Internamente, meus padrões de identificação sempre foram masculinos, portanto nunca me senti “enquadrada”. Mas, embora eu não consiga fugir da identificação masculina que a sociedade me coloca, não quero “ser” um homem, eu sou mulher. Então, para me sentir bonita, procuro me arrumar como acho que combina comigo e só hoje, depois de muitos anos, entendi que tenho minha identidade particular.” Vivi Que Ama Seu Sorriso.

A pressão vivida por Vivi em exalar feminilidade e perfeição desde pequena é bem comum na educação de milhares de brasileiras. Para se ter uma ideia, o mercado brasileiro de cosméticos, que está entre os primeiros do mundo, possui 50 milhões de consumidores infantis brasileiros, que representam 29,6% da população do país. O alvo principal? As meninas, claro. E é por isto que causa revolta quando revistas como Capricho ou Atrevida, que influenciam há anos nossas adolescentes brasileiras, massificam a divulgação de um porte estético “ideal” a ser seguido, como se tivéssemos que nos adequar a determinados modelos de beleza como sinônimo de aprovação masculina e felicidade.

A infeliz opinião da banda Fly, divulgada na revista Atrevida. Até quando serão impostas regras ao corpo e comportamento de nossas meninas?

A infeliz opinião da banda Fly, divulgada na revista Atrevida. Até quando serão impostas regras ao corpo e comportamento de nossas meninas?

Aliás, falando em perpetuação do corpo jovem, aqui vão mais alguns dados assustadores. De acordo com um relatório divulgado pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), o Brasil é vice líder no ranking mundial de procedimentos estéticos, perdendo apenas para os Estados Unidos. São mais de 2 milhões de procedimentos por ano; entre as intervenções mais feitas no país estão lipoaspiração, aumento de mama por prótese de silicone, blefaroplastia, abdominoplastia e enxerto de gordura. Mais grave, as interferências estéticas no corpo de adolescentes brasileiras só aumentam, visto que, cada vez mais cedo, aumenta-se a imposição sobre o modelo padrão de beleza, o que resulta em negação e sofrimento. O número de cirurgias plásticas em adolescentes entre 14 e 18 anos saltou de 50 mil procedimentos em 2010 para mais de 100 mil (145% a mais), segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).

E se eu não quiser entrar na faca? Não é fácil para uma mulher conviver com sua auto-estima globalmente escravizada. O Brasil é o terceiro maior mercado consumidor de Higiene Pessoal, Perfumaria e Comésticos do mundo, atrás, apenas, dos Estados Unidos e China e cada vez mais distante do Japão, quarto colocado. Responsável por mais de 1,8% do PIB nacional, a indústria brasileira de HPPC representa 9,4% do consumo mundial e ocupa uma faixa de 53% do mercado latinoamericano.

Gráfico extraído do Anuário da ABIHPEC – 2015

Gráfico extraído do Anuário da ABIHPEC – 2015

Os números elevados reforçam que não se trata de futilidade. Ao mesmo tempo em que lutamos por liberdade de expressão e independência financeira, nos deixamos intimidar pelo padrão colocado pelos meios de comunicação e pela indústria da beleza, submetendo-nos a processos e procedimentos estéticos, como se isso servisse como moeda de troca para garantir um pouco mais de auto confiança. Como exemplo para rebater essa lógica, a professora de pole dance, Pim Lopes. Para ela, a auto imagem feminina, durante muito tempo, foi uma parte bem doente de sua vida:

Até eu perceber que isto era um artifício político, uma jogada de alienação para mim enquanto cidadã, filha, mulher, demorou, porque para uma pessoa com baixa auto-estima, é difícil segurar as pontas e lutar. Mas, a partir do momento que comecei a me dar conta disso, comecei uma longa busca de reapropriação do meu corpo, por mim mesma. Então, a relação que passei a ter com meu corpo não era mais uma relação de culpa, de ‘comi isso, engordei tanto, estou flácida, tenho celulite’. Meu corpo voltou a ser meu e se tornou um veículo de prazer e de superação de limites. O que tenho dentro de mim, como motivação, força, garra e beleza, isto tudo se redefiniu e me fez querer ser veículo de transformação também de outras mulheres.” Pim Lopes Que Desencanou da Celulite Faz Tempão, 30 anos.

Rainha do lar teu cu

Somos parcela ativa no cenário corporativo, econômico e político do país. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em média, as brasileiras que estão no mercado de trabalho formal têm 10,7 anos de estudo, enquanto os homens têm 9,2. Conforme dados do Inep, até 2013, as mulheres representavam mais da metade dos estudantes ingressos em cursos de graduação presenciais, com 55% de alunas matriculadas no ensino superior. Por isto, moças, acreditem, somos muito mais do que princesinhas e rainhas do lar.

“Sobre me sentir bonita, mesmo que esse sentimento não ocorra visualmente o tempo todo, eu me sinto particularmente maravilhosa quando consigo deixar essas noias de corpo de lado e conceber a ideia de que é esse corpinho que não merece ser alvo de tanto ódio que faz com que eu tenha alcançado tantas coisas lindas. Me tornei independente relativamente cedo, sou responsável por bancar meus sonhos, me formei no curso que queria, tenho um trabalho que me faz feliz e consigo, na grande maioria das vezes, dar ao mundo o que eu acho de melhor, que é a empatia e uma energia positiva. Me sinto linda porque sei que, por mais que tenha sofrido e ainda sofra muito com essas pressões, se comparada à minha mãe e outras gerações anteriores à minha, já sou muito mais livre, decidida e certa do meu papel como mulher. Minha bagagem de vida de nenhuma forma pode ser reduzida à minha aparência física.” Bruna Meu Cabelo é Maravilhoso, 27 anos.

Tem mais. Ainda que nossos salários continuem mais baixos que dos homens, na renda familiar, somos responsáveis pela manutenção de 32,7% das famílias brasileiras. Entretanto, exalta-se um papel multitarefas e a famosa cultura da “dupla jornada” – que faz com que nossa carga horária, somada ao tempo em que passamos com afazeres domésticos, nos obrigue a ter, em média, 63,9 horas de trabalho semanais, enquanto a média dos homens não passa de 53,7 horas. Portanto, amiga, foda-se se exigirem que você esteja sempre gata.

Josi Vou Me Vestir Como eu Quiser, 23 anos, tornou-se mãe aos 20. Tem um emprego formal durante a semana e, por muito tempo, teve que complementar sua renda com freelas de fotografia, durante à noite e aos fins de semana, sacrificando boa parte do tempo que poderia passar com sua filha. Para ela, qualquer mulher é – e deve se achar – linda, independente do que a mídia diz. A Josi tá certa? Claro que está 🙂

Não é porque nas passarelas só tem altas e magras que temos que seguir essa ditadura. Temos que nos sentir lindas, maravilhosas, mesmo que estejamos gordinhas, mesmo que nosso cabelo seja cacheado, crespo ou azul. Temos que nos amar pelo que somos, a beleza vai muito além do aspecto físico. Roupas de marca não mudam e nunca vão mudar nosso carácter; somos guerreiras, cada ciclo para mulher é uma luta, desde a adolescência até a terceira idade, a cada fase, passamos por transformações físicas e psicológicas. Nós temos o dom de gerar vidas, engordamos, inchamos, sofremos ao dar a luz. É uma luta constante e ainda vem a mídia querer nos dizer o que é bonito ou feio?! Não. Nós somos o que queremos ser. A beleza está nos olhos de quem ‘se’ vê.” Josi Vou Me Vestir Como eu Quiser.

Sororidade

A cada conversa que tive para desenrolar este texto, percebi quantas vezes disparei contra mim mesma uma sirene de negatividade infernalmente barulhenta, que a cada cobrança desnecessária, acordava todos os fantasmas e estigmas que carrego sobre meu corpo. Meu quadril é grande, minha perna é torta, puta merda, quanta celulite. Odeio meus peitos pequenos, minha pele tá uma bosta, eu sou uma grande ridícula.

Me lembrei, ainda, de frases carregadas de preconceito, como “mulher se veste para outra mulher”, entre outros esteriótipos de mulheres odiosas, que competem entre si e se comparam com crueldade. Não, isto não é verdade, assim como ter momentos para refletirmos sobre os padrões de beleza que nos prendem não é futilidade. Estas são dores reais e a Tati, uma das mulheres que colaboraram com opinião para este artigo, me lembrou a importância de buscar mais generosidade não só com o próprio corpo, mas na compreensão das inseguranças de outras mulheres.

“Nos últimos anos, passei por uma fase difícil com relação à minha aparência, porque comecei a me comparar com outras mulheres e me sentia um lixo, via muitos defeitos em mim. Aí comecei a conversar com minhas amigas e isto melhorou muito minha auto estima, porque percebi o quanto alguns padrões são sutis e fazem escrava não só a mim, como a outras mulheres. Tive que reconstruir isto para me aceitar mais e passei a entender que precisamos nos juntar umas às outras, em um misto de solidariedade e cumplicidade, sem culpar ou julgar atitudes, empoderando-nos para arrebentar as correntes que nos aprisionam.”Tatiana Eu Amo Minhas Sardinhas,  27 anos.

Vivemos em uma sociedade que sempre vai colocar a mulher em um lugar de espera, para que nunca chegue nossa vez. É empobrecedor taxar a qualquer uma de nós como a patricinha, a gorda, a perua, a relaxada. A igualdade de gêneros e a luta contra as pressões sociais vêm de encontro com a descoberta de nossa sororidade, união entre nós, mulheres, compreendendo que, assim como a indústria da beleza não tem o direito de nos moldar, nós também não podemos formatar às nossas iguais em esteriótipos tão enlatados. Somos muitas, somos lindas, somos fortes e plurais. Vamos juntas.

1 - A ilustração deste texto foi carinhosamente feita por Isadora Machado Acho Mara Minha Cintura.
2 - A iniciativa do artigo veio após um bate papo entre mulheres, sobre os padrões estéticos impostos pela mídia e pela indústria da beleza, realizado na Ocupação Hotel Cambridge (MSTC) e proposto pelas mulheres do Levante Popular da Juventude. Obrigada a todas que participaram e estimularam em mim esta reflexão.
3 - Infelizmente, apenas alguns relatos foram citados no texto. Um agradecimento a todas as mulheres que dedicaram seu tempo compartilhando suas inseguranças e razões para lutar por uma sociedade mais igualitária e justa. Ainda que nem todas tenham sido citadas diretamente, busquei colocar um pouquinho de cada uma nessa luta por um cotidiano mais liberto para nós.
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