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É estranho, mas, não sei dizer exatamente quando comecei a militar pela causa feminista.

Foi quando defendi as coleguinhas do bullying? Quando matava aula, tinha uma reputação tenebrosa, e só via graça em tudo isso? Talvez, o feminismo tenha vindo na pseudo-libertação sexual do pornô alternativo em que eu me viciei, ainda manipulada por costumes patriarcais.
Eu sequer sei dizer se, quem sabe, desde sempre fui assim, e só tinha vergonha de assumir. Se não se nasce mulher – torna-se mulher – feminista então, nasci menos ainda. Mesmo questionadora, assinar a carteirinha da causa me afastaria mais ainda do considerado socialmente como ideal para uma garota da minha idade.

Então, sempre neguei. Declarava-me “humanista”, e não “feminista” (quem nunca?).

Algum tempo depois, já saturada, resolvi desentalar os incômodos que o sexismo cultural me causava. O que eu perdia me assumindo feminista, mulher, inadequada ao que pede a sociedade, não haveria de ser pior do que aguentar tudo aquilo calada, e sorrindo feito uma boneca de porcelana. Expurguei centenas de pensamentos em público, dos quais, vários tornei a analisar posteriormente, e tiveram a consideração final alterada.
Uma das ideias recentemente modificadas – inclusive, é a que mais me causou impacto – foi a relação entre gênero e luta.



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No começo, foi tudo bastante simples.
Eu era mulher, a sociedade era machista, e eu era oprimida. A missão, portanto, seria fácil, e objetiva: eu lutaria pelas melhorias na minha condição de vida, e por minhas companheiras.
Tendo isto em vista, o segundo raciocínio era óbvio. Se eu era oprimida em uma sociedade dominada por homens, então, é claro, eles jamais poderiam ser meus parceiros de luta. Ao meu lado, andariam somente as que partilhavam da mesma condição que eu.

E foi ficando difícil.
Vivendo por aí, chegou até os meus ouvidos a inquietante ideia de um movimento construído nas reflexões libertárias do feminismo. Porém, incluindo muitos outros aspectos.
Era a tal da Teoria Queer. Aí, amigxs, é que a porra começou a ficar séria.
A ideia central do Queer, não é negar a opressão feminina – até porque, seria preciso uma dose extra-grande de cegueira seletiva para tal – mas também refletir sobre outras opressões existentes no contexto patriarcal e capitalista. Como essa grande estrutura que rege o código de opressão machista social, afeta também aos homens, pessoas de diversas orientações sexuais, identidades e gêneros? Afinal, foi a partir deste contexto que nosso caráter foi moldado.
Como endossar a luta de travestis, transexuais, transgêneros, pós-gêneros e demais inadequados na nossa sociedade tão binária, onde não há espaço para nada, senão homens e mulheres heterossexuais seguindo de acordo com as normas vigentes?
Ou ainda, me peguei refletindo se uma mulher, nascida homem, mas que se identifique como mulher a partir de determinado período de sua existência, seria menos companheira-de-luta, por ter sua construção de vida inicial voltada ao gênero masculino?

Eu sei, dá pra ficar louc@ pensando nisso. E eu fiquei, juro.
Ainda existem muitas ressalvas no movimento feminista, e uma grande parte de companheiras que relutam em pensar no Queer como uma nova janela de questionamentos, e novas possibilidades de debate, justamente por temerem o desvio do foco na luta de mulheres. Mas, há algo nesta luta que me intriga.
Tenhamos como exemplo as experiências de vida, dentro de um mesmo gênero. Uma mulher branca e classe média, tem uma vivência diferente da negra e pobre. A milionária, que vai à clínica de aborto caríssima, não tem a mesma visão de mundo da empregada, que abortou com uma agulha de crochê, num fundo de quintal da periferia. Exceções estão aí para ocorrer, mas, de forma geral, o gênero biológico que nos une não é um fator estritamente determinante no modo com que seremos tratadas ao longo da vida, embora, é claro, haja a perpetuação de determinados comportamentos opressores.

Daí começa o que me tira o sono. Afinal, se o 8 de Março, simbolicamente, representa a luta da mulher operária, massacrada…por que presentear na mesma data a patroa?
Meu ponto de vista não é – de forma nenhuma – demonizar as mulheres das classes sociais mais altas, ou dizer que minha luta não é por elas. É por elas, sim, mas não necessariamente porque somos determinantemente iguais. O nosso gênero biológico, portanto, não é – e não pode ser – nosso motivo primordial para desencadear a empatia.

Por isso, embora seja certamente feminista, esta reflexão se torna frequentemente inquietante. Porque resolvi tentar olhar as pessoas além do gênero socialmente construído. Aquela ideia, que veio desde a descoberta do indivíduo no útero, que consiste em rotular as indivúdos entre rosa e azul, gentil e agressivo, passiva e ativo…já não parece mais legitimo em qualquer aspecto. Aprofundar a compreensão disto foi apenas consequência.

Ora, se grito pela libertação feminina, pelo uso-ou-desuso do salto alto, da maquiagem, da menstruação, porque não haveria, também, de acreditar na libertação masculina, dos parâmetros ignorantes de sexualidade e agressividade artificiais?
Se eu luto para que eu e minhas “semelhantes” tenhamos a livre opção de trânsito entre identidades e sexualidades, por que restringi-lo aos demais?
Que usem – ou não – batons, cintas-liga, queimem sutiãs. Que a luta do 8 de Março se torne de todxs nós. Pelo fim da opressão patriarcal machista, da dicotomia de gênero, da homofobia, lesbofobia, e transfobia. Pela total eliminação da limitação expressiva humana em detrimento da manutenção do status quo. Que, juntxs, pensemos e repensemos, com as diferentes histórias de vida e luta, uma sociedade, por fim, liberta.

Um bom jeito para construir tudo isso?
Não distribua rosas. No 8 de Março, e em várias outras datas, venha debater conosco. Ouça, fale e compartilhe.

Esther Sá tem 19 anos, e, de tempos em tempos, se contradiz.
Vegana, feminista, anarquista, e começa a se aprofundar nos estudos da Teoria Queer, embora haja quem a olhe torto por isso.
Quando o corporativismo burguês dá cinco minutos, escreve para o Krasis.

 

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